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sábado, 11 de outubro de 2014

Parte III - Brasileira, negra, pobre... e humana: o retrato de uma escritora em sua obra.

Eliane F.C.Lima 
(Registrado no Escritório de Direitos Autorais)

A última parte do estudo de Quarto de despejo seleciona alguns aspectos inportantes do texto da escritora, os quais, embora sejam sempre apenas tangenciais, apontam para um sentimento já de reflexão sobre as injustiças sociais sedimentadas e que a circundavam como forças invencíveis.
Uma delas é sua condição de negra.

… Sentei ao sol para escrever. A filha da Silvia, uma menina de seis anos, passava e dizia:
- Está escrevendo, negra fidida! (p. 20)

Quiz saber o que eu escrevia. Eu disse ser o meu diario.
- Nunca vi uma preta gostar tanto de livro como você. (p. 20)


Embora essa relação de etnia negra x branca seja tratada algumas vezes com ingenuidade – hoje os grupos negros organizados têm uma visão mais ostensiva –, sua condição de população subjugada não é esquecida. Hoje em dia, com o advento da Internet e as posições francamente racistas que têm se evidenciado e que afloram pelos motivos menos palpáveis, percebe-se que pouca coisa mudou.

Conversei com uma senhora que cria uma menina de cor. É tão boa para a menina... Lhe compra vestidos de alto preço. Eu disse:
- Antigamente eram os pretos que criava os brancos. Hoje são os brancos que criam os pretos. (p. 19)

… Nas prisões os negros eram os bodes espiatorios [sic]. Mas os brancos agora são mais cultos. E não nos trata com despreso. Que Deus ilumine os brancos para que os pretos sejam feliz. (p. 23)

Eu estava pagando o sapateiro e conversando com um preto que estava lendo um jornal. Ele estava revoltado com um guarda civil que espancou um preto e amarrou numa arvore. O guarda civil é branco. E há certos brancos que transforma preto em bode expiatorio. Quem sabe se guarda civil ignora que já foi extinta a escravidão e ainda estamos no regime da chibata? (p. 92)

Em certas passagens, percebe-se que tem dentro de si, ainda que negra, a visão equivocada que os brancos têm de sua etnia e que é reproduzida em seu discurso:

A Rosalina dizia que ela é sosinha e sustenta 3 filhos. É que ela não sabe que o seu filho Celso anda dizendo que quer fugir de casa porque tem nojo dela. Acha a mãe muito barbara e avarenta. Ele diz que queria ser meu filho. Então eu lhe digo:
- Se você fosse meu filho, você era preto. E sendo filho de Rosalina você é branco. (p. 88)  

A Florenciana é preta. Mas é muito diferente dos pretos por ser muito ambiociosa. (p. 64)


Outra questão que perpassa todo o texto é a firme posição que mantém como mulher. Solteira  e sozinha, cria seus três filhos, lutando por eles mesmo dentro da pobreza extrema em que vive, sem abrir mão de sua independência. Apesar de as questões feministas não terem sido formuladas, naquela época,  em certos momentos, seu discurso atinge argumentos inacreditáveis de lucidez, em tal aspecto.           

Elas alude que eu não sou casada. Mas eu sou mais feliz do que elas.
…............................................................................................................
Os meus filhos não são sustentados com pão de igreja. Eu enfrento qualquer espécie de trabalho para mantê-los. E elas, tem que mendigar e ainda apanhar. Parece tambor. A noite enquanto elas pede socorro eu tranquilamente no meu barraco ouço valsas vienenses. Enquanto os esposos quebra as tabuas do barracão eu e meus filhos dormimos socegados. Não invejo as  mulheres casadas da favela que levam vida de escravas indianas. (p. 11)

Há as mulheres que os esposos adoece e elas no penado da enfermidade mantem o lar. Os esposos quando vê as esposas manter o lar, não saram nunca mais. (p. 15)


… As mulheres que eu vejo passar vão nas igrejas buscar pães para os filhos. Que o Frei Luiz lhes dá, enquanto os esposos permanecem debaixo das cobertas. Uns porque não encontram emprego. Outros porque estão doentes. Outros porque embriagam-se. (p. 29)

O senhor Manuel aparaceu dizendo que quer casar-se comigo. Mas eu não quero porque já estou na maturidade. E depois, um homem não há de gostar de uma mulher que não pode passar sem ler. E que levanta para escrever. E que deita com lapis e papel debaixo do travesseiro. Por isso é que eu prefiro viver só para o meu ideal. (p. 41)


Eu pensava nas roupas por lavar. Na Vera. E se a doença fosse piorar? Eu não posso contar com o pai dela. Ele não conhece a Vera. E nem a Vera conhece ele.
Tudo na minha vida é fantastico. Pai não conhece filho, filho não conhece pai. (p. 55)


Tem hora que eu revolto comigo por ter iludido com os homens e arranjado estes filhos. (p. 74)

O pai da Vera é rico, podia ajudar-me um pouco. Ele pede para eu não divulgar-lhe o nome no Diario, não divulgo. Podia reconhecer o meu silêncio. (p. 149)


Embora não tenha plena consciência de que quase todos os chamados  “comportamentos” femininos e masculinos são uma construção cultural e não um dado inato – feministas, hoje em dia, já argumentam até que aspectos sexuais, como a heterossexualidade, são impostos a todo ser humano que nasce -, pode-se surpreender que o discurso da escritora vislumbra a solidificação social e de gênero embutido em manuais canônicos, como os livros de História.  


 … Quando eu era menina o meu sonho era ser homem para defender o Brasil porque eu lia a Historia do Brasil e ficava sabendo que existia guerra. Só lia os nomes masculinos como defensor da patria. Então eu dizia para a minha mãe:
- Porque a senhora não faz eu virar homem? (p. 44-45)


Dentre muitos outros dados que podem ser examinados no texto de Carolina de Jesus, ressalte-se seu senso de reflexão crítica sobre a natureza da ação da religião juntos às comunidades desfavorecidas ou o inócuo e adulterado papel do poder instituído que deveria servir social e efetivamente a essas mesmas comunidades e que não o faz.

Fico pensando na vida atribulada e pensando nas palavras do Frei Luiz que nos diz para sermos humildes. Penso: se o Frei Luiz fosse casado e tivesse filhos e ganhasse salario minimo, aí eu queria ver se o Frei Luiz era humilde. Diz que Deus dá valor só aos que sofrem com resignação. Se o Frei visse os seus filhos comendo generos deteriorados, comidos pelos corvos e ratos, havia de revoltar-se, porque a revolta surge das agruras. (p. 72)

 
Percebi que no Juizado as crianças degrada a moral. Os Juizes não tem capacidade para formar o carater das crianças. O que é que lhes falta? interesse pelos infelizes ou verba do Estado? (p. 75)

… Em 1952 eu procurava ingressar na Vera Cruz e fui no Juizado falar com o Dr. Nascimento se havia possibilidade de internar os meus filhos. Ele disse-me que se os meus filhos fossem para o Abrigo que ia sair ladrões.
Fiquei horrorisada ouvindo um Juiz dizer isto. (p. 75)

Quando o carro capela vem na favela surge vários debates sobre a religião. As mulheres dizia que o padre disse-lhes que podem ter filhos e quando precisar de pão podem ir buscar na igreja.
Para o senhor vigario, os filhos de pobres criam só com pão. Não vestem e não calçam. (p. 120)

… De manhã teve missa. O padre disse para nós não beber, porque o homem que bebe não sabe o que faz. Que devemos beber limonada e agua. Varias pessoas veio assistir a missa. Ele disse que sente prazer de estar entre nós.
Mas se o padre residisse entre nós, havia de expressar de outra forma. (p. 121)


Por fim, parece interessante serem citadas algumas passagens que têm verdadeiro valor de axiomas e que servem para fechar o interessante texto da escritora. Recomendo a leitura do livro, que se tornou um verdadeiro documento testemunhal de uma época brasileira – final dos anos 1950 e princípio dos 1960 -, época que, embora pareça pretérita, ainda faz eco nos acontecimentos de agora.

… O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. (p. 23)

Talvez ela não mais tem ilusão. Entregou sua vida aos cuidados da vida. (p.38)

Cheguei a conclusão que quem não tem de ir pro céu, não adianta olhar para cima. (p.34)

Pretere os filhos e prefere os homens.
O homem entra pela porta. O filho é raiz do coração. (p.40)

… a revolta surge das agruras. ( p.72)


Enfim, o mundo é como o branco quer. Eu não sou branca, não tenho nada com estas desorganizações. (p. 59)

 
Recomendo visita a meus blogues Poema Vivo (link) e Conto-gotas (link). Embora com postagens antigas, não estão esquecidos e há muito texto lá para ser lido.

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