Pesquisar este blog

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Carolina Maria de Jesus: brasileira, negra, pobre... e humana: o retrato de uma escritora em sua obra – parte II

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais)

Nossa segunda postagem sobre Quarto de despejo pretende refletir sobre o olhar que Carolina Maria de Jesus tem sobre o ambiente que a cerca e a relação que parece manter com esse ambiente.
Essa reflexão, a princípio, pode ser comparada com o olhar que hoje em dia tem grande parte dos moradores dessas favelas – hoje denominadas eufemisticamente de “comunidades” – sobre si mesma. Nos depoimentos a que se assiste na grande mídia pode-se ver que há já um sentimento, se não de orgulho, mas de apaziguamento com o lugar onde vive toda essa população. Por coincidência, acaba de sair uma pesquisa que mostra exatamente isso: a maioria das pessoas desses locais não deseja se mudar dali. Como exemplo concreto, pode-se, ainda, citar um rap que foi lançado há poucos anos atrás – 1995 – e que fez muito sucesso. Desde o título, já se antevê que a relação desse morador com seu entorno é de pertencimento, de aceitação, de sentimento de acolhimento ao local onde nasceu e vive. A letra indica a necessidade de melhora, sim, mas nunca de rejeição ou estranhamento a esse lugar de pobreza, como se comprova no refrão:

Rap da Felicidade

Compositores: Cidinho e Doca (nota 1)

Eu só quero é ser feliz,
Andar tranqüilamente,
Na favela onde eu nasci.
É...
E poder me orgulhar
E ter a consciência
Que o pobre tem seu lugar

Ver a letra toda no link.

Inicialmente deve-se chamar a atenção, é verdade, para o fato de que as favelas mudaram: já não se encontram praticamente “barracos” de madeira, como à época de lançamento do livro, e quase todas as moradias são de “alvenaria”, símbolo maior do sonho dos moradores das favelas de então, como se vê nas palavras de Carolina:


(…) O José Carlos disse:
- Não fique triste mamãe! Nossa Senhora Aparecida há de ter dó da senhora. Quando eu crescer eu compro uma casa de tijolos para a senhora. (p. 11-12)

… Eu estou contente com os meus filhos alfabetizados. Compreendem tudo. O José Carlos disse-me que vai ser um homem distinto e que eu vou tratá-lo de Seu José.
Já tem pretensões: quer residir em alvenaria. (p. 119).

Outra reflexão que pode ser feita, é que a escritora, embora sempre muito pobre, não teve, entretanto sua origem numa favela. E assim o texto do livro marca uma avaliação inteiramente contrária que a autora tem sobre o que a letra da canção chama de “seu lugar”:


…Estou residindo na favela. Mas se Deus me ajudar hei de mudar daqui. Espero que os políticos estingue as favelas. (p.15)

É que eu estou escrevendo um livro, para vendê-lo. Viso com esse dinheiro comprar um terreno para eu sair da favela. (p. 21)

…Lavei o assoalho porque estou esperando a visita de um futuro deputado e ele quer que eu faça uns discursos para ele. Ele disse que pretende conhecer a favela, que se for eleito há de abolir as favelas. (p.27)

O dia que eu mudar da favela vou acender uma vela para São Sebastião. (p.76)

(…) Se eu fosse homem não deixava meus filhos residir nessa espelunca. Se Deus auxiliar-me hei de sair daqui, e não hei de olhar para trás. (p.159)

Outro dado, de não pouca importância e que deve ser levado em consideração, é que na época da publicação do livro começa a se sedimentar a oposição da cidade contra as favelas, ainda incipientes e em muito menor número, acrescentando-se o fato bastante relevante de que a visão das classes mais favorecidas economicamente sempre é a visão dominante, a tal ponto, que as minorias, como os moradores de favelas, como os negros em relação aos brancos, como as mulheres em relação à sociedade patriarcal, acabam se enxergando como o “outro” em relação a um “eu” dominador. Então o morar em uma casa de alvenaria, mais do que ser o desejo de alcance de um conforto, passa a ser traço valorativo de inclusão no mundo reconhecido. Quarto de despejo traduz, aos poucos, esse discurso dominante:

…Os visinhos ricos de alvenaria dizem que nós somos protegidos pelos politicos. É engano. Os politicos só aparece aqui no quarto de despejo, nas epocas eleitorais. (p. 37)

…Os visinhos de alvenaria olha os favelados com repugnancia. Percebo seus olhares de odio porque eles não quer a favela aqui. Que a favela deturpou o bairro. Que tem nojo da pobreza. Esquecem eles que na morte todos ficam pobres. (p.46)

Uma tarde de terça-feira. A sogra de Dona Ilda estava sentada e disse:
- Podia dar uma enchente e arrazar a favela e matar estes pobres cacetes. Tem hora que eu revolto contra Deus por ter posto gente pobre no mundo, que só serve para amolar os outros. (p.47)

Quando alguém nos insulta é só falar que é da favela e pronto. Nos deixa em paz. Percebi que nós da favela somos temido. (p.70)

E se o discurso da cidade vem bastante claro nas páginas do diário, indiretamente ele acaba se realizando também na avaliação testemunhal dessa moradora da favela, que, assim, se enxerga como o “outro” em relação à cidade, apartada de seu direito de moradora de São Paulo.

...Eu classifico São Paulo assim: o Palacio, é a sala de visita. A Prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde jogam os lixos.  (p.25)

Devo incluir-me, porque eu tambem sou favelada. Sou rebotalho. Estou no quarto de despejo, e o que está no quarto de despejo ou queima-se ou joga-se no lixo. (p.29)

Oh! São Paulo rainha que ostenta vaidosa a tua coroa de ouro que são os arranha-céus. Que veste viludo e seda e calça meias de algodão que é a favela. (p. 33)

Aqui nesta favela a gente vê coisa de arrepiar os cabelos. A favela é uma cidade esquisita e o prefeito daqui é o Diabo. (p.77)

Percebo que todas as pessoas que residem na favela, não aprecia o lugar. (p.77)

Favela, sucursal do Inferno, ou o proprio Inferno. (p. 139)

Percebe-se que a autora constrói seu discurso de um lugar antagônico à favela.  E esse lugar torna-a uma estranha em relação a seus pares. Percebe-se que essa avaliação hostil em relação ao entorno e seus habitantes é devolvido pelos demais da mesma forma; seus vizinhos, conscientes do sentimento que despertam, pela atuação sempre crítica de Carolina, sua tentativa de influir nas ações que desaprova, têm por ela, muitas vezes, um profundo senso de rejeição.


Aqui, todas impricam comigo. Dizem que falo muito bem. Que sei atrair os homens. (…) Quando fico nervosa não gosto de discutir. Prefiro escrever. Todos os dias eu escrevo. Sento no quintal e escrevo. (p. 17)
 
(…) Só interfiro-me nas brigas onde prevejo um crime. Não sei a origem desta antipatia por mim. Com os homens e as mulheres eu tenho um olhar duro e frio. O meu sorriso, as minhas palavras ternas e suaves, eu reservo para as crianças. (p.29-30)

Não tenho força física, mas as minhas palavras ferem mais do que espada. E as feridas são incicatrisaveis. Ele deixou de aborrecer-me porque eu chamei a radio patrulha para ele, e ele ficou 4 horas detido. Quando ele saiu andou dizendo que ia matar-me. (p. 39-40)

Se eu gastasse todo o dinheiro que já gastei telefonando para a Radio Patrulha, eu podia comprar um quilo de carne! (p.95)

Mas até ele anda atrás da I. e da C. Apareceu tantos jovens de 15 e 16 anos aqui na favela, que vou dar parte as autoridades. (p. 116)

(…) Telefonei para as Folhas para mandar uns reporteres na favela para expulsar uns ciganos que estão acampados aqui. Eles jogam excrementos na rua. As pessoas que reside perto dos ciganos estão queixando que eles falam a noite toda. E não deixam ninguem dormir. Eles são violentos e os favelados tem medo deles. Mas eu já preveni que comigo a sopa é mais grossa. (p.118) 

…Eu percebo que se este Diário for publicado vai maguar muita gente. Tem pessoa que quando me vê passar saem da janela ou fecham as portas. Estes gestos não me ofendem. (p. 66)

Dada a riqueza de faces que o testemunho de Carolina Maria de Jesus apresenta se fará necessária uma terceira postagem posteriormente.

Nota 1: algumas informações sobre os compositores em link.

Visite também meus blogues Poema Vivo (link) e  Conto-gotas (link).

Nenhum comentário: