Eliane F.C.Lima (Registrado no
Escritório de Direitos Autorais - RJ)
Na
primeira parte desse estudo sobre Dom Casmurro,
de Machado de Assis, foram feitas considerações sobre o caráter da
personagem Escobar, suposto lado de um triângulo amoroso, traçado
pelas
palavras de um marido, Bentinho, que se supõe traído, o que torna o
depoimento passível de dúvida. Foi chamada a atenção de quem lê
para dois fatores: a complacência com que o narrador vai enumerando
detalhes sobre o outro, que vão formando uma
índole no mínimo
suspeita,
ânimo bastante diferente que mantém em relação a ex-mulher
Capitu; a vocação “comercial” de Escobar, que será mais
detalhadamente explicitada neste segmento.
Quando
começa a frequentar a casa de Bentinho, o ainda postulante a
padre, impressiona a família do amigo. Apenas a velha prima,
extremamente crítica, enxerga nele o que os demais não veem. Mas a
observação que faz vem ao encontro daquilo que já vinha sendo
suspeitado por quem lê:
… e
prima Justina não achou tacha que lhe pôr; depois, sim, no segundo
ou terceiro domingo, veio ela confessar-nos que o meu amigo Escobar
era um tanto metediço e tinha uns olhos policiais a que não
escapava nada. (cap. XCIII)
Ao
contrário da prima, ao companheiro de seminário
surpreende o carinho e admiração com que o visitante se refere
sempre à D.a
Glória, sua mãe:
-
Também eu fiquei gostando de todos, mas é possível fazer
distinção, confesso-lhe que sua mãe é uma pessoa adorável. (cap.
LXXVIII )
Nem
de outro modo se explica a opinião de Escobar, que apenas trocara
com ela quatro palavras. (cap. LXXIX)
Insistia
na educação, nos bons exemplos, na “doce e rara mãe” que o céu
me deu... Tudo isso com a voz engasgada e trêmula.
Todos
ficaram gostando dele. (cap. XCIII)
Escobar
confessou esse acordo do interno com o externo, por palavras tão
finas e altas que me comoveram; depois, a propósito da beleza moral
que se ajusta à física, tornou a falar de minha mãe, “um anjo
dobrado”, disse ele. (mesmo capítulo)
Aos poucos, Escobar vai
amiudando a conversa sobre a viúva e Bentinho, ingenuamente,
vai dando as explicações.
-
Já fez quarenta, respondi eu vagamente por vaidade.
-
Não é possível! exclamou Escobar. Quarenta anos! Nem parece
trinta; está muito moça e bonita. Também a alguém há de você
sair, com esses olhos que Deus lhe deu; são exatamente os dela.
Enviuvou há muitos anos?
Contei-lhe
o que sabia dela e de meu pai. Escobar escutava atento, perguntando
mais, pedindo explicação das passagens omissas ou só escuras. […]
E não contávamos voltar à roça? (cap.
XCIII)
Mas os detalhes que vai
arrancando de Bentinnho não se limitam a aspectos pessoais da
senhora. Aos poucos, Bentinho acaba fazendo um verdadeiro inventário
dos bens da mãe: o número de escravos que tinha, todas as casas que
possuía alugadas, além da casa de Mata-Cavalos – hoje Rua do
Riachuelo – e a da roça:
-
O que me admira é que D. Glória se acostumasse logo a viver em casa
da cidade, onde tudo é apertado; a de lá é grande naturalmente.
-
Não sei, mas parece. Mamãe tem outras casas maiores que esta; diz
porém que há de morrer aqui. As outras estão alugadas. Algumas são
bem grandes, como a da Rua da Quitanda... (cap.
XCIII)
O interesse de Escobar
– travestido de qualquer outra coisa, como supõe o Bentinho da
época, mas do qual desconfia a pessoa que lê – vem como golpe
final, algumas páginas adiante:
Nem
ele sabia só elogiar e pensar, sabia também calcular depressa e
bem. […] Não se imagina a facilidade com que ele somava ou
multiplicava de cor. (cap. XCIV)
-
Por exemplo... dê-me um caso, dê-me uma porção de números que eu
não saiba nem possa saber antes... olhe, dê-me o número das casas
de sua mãe e os aluguéis de cada uma, e se eu não disser a soma
total em dous, em um minuto, enforque-me! (cap. XCIV)
O Dom Casmurro, o homem
já maduro que resolve narrar suas memórias, vai assim desenvolvendo
um perfil de Escobar, que se harmoniza com aquela guinada, pouco
compreendida, de seminarista a comerciante. É sem surpresa que a
perspicácia do comentário da prima é encontrado adiante:
Era
opinião de prima Justina que ele afagara a ideia de convidar minha
mãe a segundas núpcias. (cap. XCVIII)
E sem surpresa também
se percebe a natureza do interesse do rapaz pela mãe do amigo e do
motivo de sua desistência, surpreendido em suas próprias palavras:
“D. Glória é medrosa e não tem ambição.”
(mesmo capítulo)
Se o matrimônio com
D.a Glória não parece possível, a amizade com Bentinho,
o herdeiro, é passível de concretização. É de Escobar a ideia de
que a promessa da mãe do amigo de dar um padre a Deus, seja cumprida
por outro menino, um menino orfão. Assim sairiam os dois do
seminário e o casamento de Bentinho seria possível e a amizade
continuaria.
E é o que se verifica.
Porque o imprevisto casamento de Escobar com Sancha, a melhor amiga
de Capitu, a eleita de Bentinho e sua esperada futura esposa,
estreita e alicerça a amizade.
Venceu
Escobar; posto que vexada, Capitu entregou-lhe a primeira carta, que
foi mãe e avó das outras. Nem depois de casado suspendeu ele o
obséquio... Que ele casou, – adivinha com quem, – casou com a
boa Sancha, a amiga de Capitu, quase irmã dela, tanto que alguma
vez, escrevendo-me, chamava a esta a “sua cunhadinha”. Assim se
formam as afeições e os parentescos, as aventuras e os livros.
(mesmo
capítulo)
Apesar
de Capitu e o marido terem esperado por um longo tempo a vinda de um
filho que parecia quase impossível – Sancha e Escobar já eram
pais de uma menina –,
nascidos os filhos de ambos, estabelecia-se a intimidade total dos
casais.
É o filho de Bentinho
e Capitu, entretanto, que, crescendo e teimando em imitar, em todos
os gestos e atitudes o marido de Sancha, que faz o pai levantar a
suspeita da traição de sua mulher com Escobar, mesmo depois da
morte desse. Não há, em toda a narrativa, nenhum dado concreto que
justifique as suspeitas do marido, a não ser suas conclusões
subjetivas, seu enorme sentimento de inferioridade diante de Capitu.
Inclusive, o próprio sentimento de Escobar em relação a sua filha
e o filho do amigo – “Escobar acompanhava muita vez as minhas
criancices; também interrogava o futuro. Chegava a falar da hipótese
de casar o pequeno com a filha”. (Cap. CVIII) – embaça no
espírito de quem faz a leitura a possibilidade de serem irmãos.
Seria o desejo de Escobar, lançado no meio do discurso do velho
narrador, uma pista para desfazer sua desconfiança paranoica? Ou, ao
contrário, para enfatizar o grau elevado e sem limites de uma jogada
comercial, que envolveria seus próprios filhos e garantiria ao comerciante a fortuna do outro?
De qualquer modo, o que
fica evidente, com uma leitura analítica, é a desigualdade de
tratamento com que são tratados os supostos parceiros de traição.
Apesar de ter seu temperamento esboçado, aos poucos, salva-se
Escobar do julgamento inclemente dado pelo memorialista à sua
mulher. Salva-se, ainda, desse mesmo julgamento feito pela opinião
pública e crítica nesses cem anos de publicação de Dom
Casmurro.
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