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sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Estudo de Escobar: desagravo a Capitu - PARTE II


Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

Na primeira parte desse estudo sobre Dom Casmurro, de Machado de Assis, foram feitas considerações sobre o caráter da personagem Escobar, suposto lado de um triângulo amoroso, traçado pelas palavras de um marido, Bentinho, que se supõe traído, o que torna o depoimento passível de dúvida. Foi chamada a atenção de quem lê para dois fatores: a complacência com que o narrador vai enumerando detalhes sobre o outro, que vão formando uma índole no mínimo suspeita, ânimo bastante diferente que mantém em relação a ex-mulher Capitu; a vocação “comercial” de Escobar, que será mais detalhadamente explicitada neste segmento.
Quando começa a frequentar a casa de Bentinho, o ainda postulante a padre, impressiona a família do amigo. Apenas a velha prima, extremamente crítica, enxerga nele o que os demais não veem. Mas a observação que faz vem ao encontro daquilo que já vinha sendo suspeitado por quem lê:

e prima Justina não achou tacha que lhe pôr; depois, sim, no segundo ou terceiro domingo, veio ela confessar-nos que o meu amigo Escobar era um tanto metediço e tinha uns olhos policiais a que não escapava nada. (cap. XCIII)

Ao contrário da prima, ao companheiro de seminário surpreende o carinho e admiração com que o visitante se refere sempre à D.a Glória, sua mãe:

- Também eu fiquei gostando de todos, mas é possível fazer distinção, confesso-lhe que sua mãe é uma pessoa adorável. (cap. LXXVIII )

Nem de outro modo se explica a opinião de Escobar, que apenas trocara com ela quatro palavras. (cap. LXXIX)

Insistia na educação, nos bons exemplos, na “doce e rara mãe” que o céu me deu... Tudo isso com a voz engasgada e trêmula.
Todos ficaram gostando dele. (cap. XCIII)

Escobar confessou esse acordo do interno com o externo, por palavras tão finas e altas que me comoveram; depois, a propósito da beleza moral que se ajusta à física, tornou a falar de minha mãe, “um anjo dobrado”, disse ele. (mesmo capítulo)

Aos poucos, Escobar vai amiudando a conversa sobre a viúva e Bentinho, ingenuamente, vai dando as explicações.

- Já fez quarenta, respondi eu vagamente por vaidade.
- Não é possível! exclamou Escobar. Quarenta anos! Nem parece trinta; está muito moça e bonita. Também a alguém há de você sair, com esses olhos que Deus lhe deu; são exatamente os dela. Enviuvou há muitos anos?
Contei-lhe o que sabia dela e de meu pai. Escobar escutava atento, perguntando mais, pedindo explicação das passagens omissas ou só escuras. […] E não contávamos voltar à roça? (cap. XCIII)

Mas os detalhes que vai arrancando de Bentinnho não se limitam a aspectos pessoais da senhora. Aos poucos, Bentinho acaba fazendo um verdadeiro inventário dos bens da mãe: o número de escravos que tinha, todas as casas que possuía alugadas, além da casa de Mata-Cavalos – hoje Rua do Riachuelo – e a da roça:

- O que me admira é que D. Glória se acostumasse logo a viver em casa da cidade, onde tudo é apertado; a de lá é grande naturalmente.
- Não sei, mas parece. Mamãe tem outras casas maiores que esta; diz porém que há de morrer aqui. As outras estão alugadas. Algumas são bem grandes, como a da Rua da Quitanda... (cap. XCIII)

O interesse de Escobar – travestido de qualquer outra coisa, como supõe o Bentinho da época, mas do qual desconfia a pessoa que lê – vem como golpe final, algumas páginas adiante:

Nem ele sabia só elogiar e pensar, sabia também calcular depressa e bem. […] Não se imagina a facilidade com que ele somava ou multiplicava de cor. (cap. XCIV)

- Por exemplo... dê-me um caso, dê-me uma porção de números que eu não saiba nem possa saber antes... olhe, dê-me o número das casas de sua mãe e os aluguéis de cada uma, e se eu não disser a soma total em dous, em um minuto, enforque-me! (cap. XCIV)

O Dom Casmurro, o homem já maduro que resolve narrar suas memórias, vai assim desenvolvendo um perfil de Escobar, que se harmoniza com aquela guinada, pouco compreendida, de seminarista a comerciante. É sem surpresa que a perspicácia do comentário da prima é encontrado adiante:

Era opinião de prima Justina que ele afagara a ideia de convidar minha mãe a segundas núpcias. (cap. XCVIII)

E sem surpresa também se percebe a natureza do interesse do rapaz pela mãe do amigo e do motivo de sua desistência, surpreendido em suas próprias palavras: “D. Glória é medrosa e não tem ambição.” (mesmo capítulo)
Se o matrimônio com D.a Glória não parece possível, a amizade com Bentinho, o herdeiro, é passível de concretização. É de Escobar a ideia de que a promessa da mãe do amigo de dar um padre a Deus, seja cumprida por outro menino, um menino orfão. Assim sairiam os dois do seminário e o casamento de Bentinho seria possível e a amizade continuaria.
E é o que se verifica. Porque o imprevisto casamento de Escobar com Sancha, a melhor amiga de Capitu, a eleita de Bentinho e sua esperada futura esposa, estreita e alicerça a amizade.

Venceu Escobar; posto que vexada, Capitu entregou-lhe a primeira carta, que foi mãe e avó das outras. Nem depois de casado suspendeu ele o obséquio... Que ele casou, – adivinha com quem, – casou com a boa Sancha, a amiga de Capitu, quase irmã dela, tanto que alguma vez, escrevendo-me, chamava a esta a “sua cunhadinha”. Assim se formam as afeições e os parentescos, as aventuras e os livros. (mesmo capítulo)

Apesar de Capitu e o marido terem esperado por um longo tempo a vinda de um filho que parecia quase impossível – Sancha e Escobar já eram pais de uma menina –, nascidos os filhos de ambos, estabelecia-se a intimidade total dos casais.
É o filho de Bentinho e Capitu, entretanto, que, crescendo e teimando em imitar, em todos os gestos e atitudes o marido de Sancha, que faz o pai levantar a suspeita da traição de sua mulher com Escobar, mesmo depois da morte desse. Não há, em toda a narrativa, nenhum dado concreto que justifique as suspeitas do marido, a não ser suas conclusões subjetivas, seu enorme sentimento de inferioridade diante de Capitu. Inclusive, o próprio sentimento de Escobar em relação a sua filha e o filho do amigo – “Escobar acompanhava muita vez as minhas criancices; também interrogava o futuro. Chegava a falar da hipótese de casar o pequeno com a filha”. (Cap. CVIII) – embaça no espírito de quem faz a leitura a possibilidade de serem irmãos. Seria o desejo de Escobar, lançado no meio do discurso do velho narrador, uma pista para desfazer sua desconfiança paranoica? Ou, ao contrário, para enfatizar o grau elevado e sem limites de uma jogada comercial, que envolveria seus próprios filhos e garantiria ao comerciante a fortuna do outro?
De qualquer modo, o que fica evidente, com uma leitura analítica, é a desigualdade de tratamento com que são tratados os supostos parceiros de traição. Apesar de ter seu temperamento esboçado, aos poucos, salva-se Escobar do julgamento inclemente dado pelo memorialista à sua mulher. Salva-se, ainda, desse mesmo julgamento feito pela opinião pública e crítica nesses cem anos de publicação de Dom Casmurro.


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