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domingo, 8 de abril de 2012

O tempo da enunciação X o tempo do enunciado (diegese ): anacronias
















Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)

I

Neste estudo, que também será dividido em duas partes, será feita uma análise da diferença que ocorre entre a temporalidade narrativa e a do discurso da enunciação. É necessário relembrar, de início, um conceito já exposto, quanto à estrutura de um texto narrativo: há um tempo da história narrada (diegese, enunciado), que se apresenta cronológico, embora fictício, através da menção a datas (dia, mês, ano, semanas) e o tempo da enunciação (o discurso do narrador), que pode não respeitar a linearidade do primeiro, começando, como em Memórias póstumas de Brás Cubas, por exemplo, pela morte da personagem-título e, depois, voltando a seu nascimento. Nesse caso, há um descompasso entre o tempo do enunciado – que vai, cronologicamente, de antes do nascimento da personagem/narrador até depois de sua morte – e o tempo da enunciação, esse, sim, completamente arbitrário e que escolhe, conforme a necessidade organizacional do texto, por qual momento de seu objeto narrado deve começar. No romance citado, focalizar sua morte e estar já morto libera o narrador/personagem de suas ligações sociais de ser vivo e permite que ele conte, sem limites, toda a sua vida. Nesse caso, a inversão, pela enunciação, do tempo do enunciado é fundamental: “Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi.”
A esses saltos temporais, no tempo da história, que podem recuar ou avançar a trechos ainda não narrados, dá-se o nome de “anacronias” e podem ir além de uma necessidade efabuladora e representar todo o “fetiche” – ouse-se o uso de tal termo – de um texto literário. A famosa anacronia do romance citado tem feito a delícia de gerações de leitoras/leitores.
Neste artigo, se fará um estudo breve de alguns aspectos da anacronia em Machado de Assis – Memórias póstumas de Brás Cubas (MPBC), de 1881, Quincas Borba (QB) (de 1891) – e em Manuel Antônio de Almeida – Memórias de um sargento de milícias (MSM) (de 1854) –, sob o aspecto dessa liberdade temporal do narrador do texto em relação à história contada.
São famosas as digressões machadianas, comentários do narrador sobre um determinado tema suscitado pelo enredo, que, intrometendo-se no curso dos acontecimentos e dando ênfase à enunciação, paralisam o tempo cronológico do enunciado. Tais digressões evidenciam, tanto quanto a narrativa, o verdadeiro espírito do texto machadiano:

Parava, e as tentações paravam também. Ele, um Santo Antão leigo, diferenciava-se do anacoreta em amar as sugestões do Diabo, uma vez que teimassem muito. (QB, p. 661)E enquanto uma chora a outra ri; é a lei do mundo, meu rico senhor; é a perfeição universal. Tudo chorando seria monótono, tudo rindo cansativo; mas uma boa distribuição de lágrimas e polcas, soluços e sarabandas, acaba por trazer à alma do mundo a variedade necessária, e faz-se o equilíbrio da vida. (QB, p. 676)

Em muitas passagens, sob um discurso francamente metalinguístico, as palavras daquele que conta a história não poderiam ser mais didáticas quanto à diferenciação entre tempo diegético (cronológico e intratextual) e tempo do discurso do narrador (enunciação) e seu desencontro. De notável, a ironia em relação às escolhas de uma possível figura leitora do primeiro tempo em detrimento do último:

Se o leitor não é dado à contemplação destes fenômenos mentais, pode saltar o capítulo; vá direto à narração. (MPBC – p. 520)Veja o leitor a comparação que melhor lhe quadrar, veja-a e não esteja daí a torcer-me o nariz, só porque ainda não chegamos à parte narrativa destas memórias. Lá iremos. Creio que prefere a anedota à reflexão, como os outros leitores, seus confrades, e acho que faz muito bem. (MPBC – p. 516)Mas o livro é enfadonho, cheira a sepulcro, traz certa contração cadavérica; vício grave, e aliás ínfimo, porque o maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narração direta e nutrida... (MPBC – p. 583).
A próxima postagem concluirá a investigação sobre a utilização intencional, por parte daquele que conduz a narrativa literária – o narrador –, dos desacertos entre o tempo em seu discurso e o tempo cronológico da narrativa, desacertos manipulados como técnica de construção.

Renovo o convite para meus blogues Poema Vivo (link) e Conto-gotas (link).

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