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domingo, 30 de maio de 2010

Autoria de mulher: um olhar pós-moderno sobre o mundo - Literatura, já 14/Palavras sobre palavras 16

Eliane F.C.Lima

A escritora sobre a qual vou refletir hoje – Luci Collin – é da novíssima geração. O texto foi transcrito do livro 25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira, organização de Luiz Ruffato (Rio de Janeiro: Record, 2004). Ela nasceu e mora em Curitiba e leciona Literaturas de língua inglesa, na UFPR. É premiada por sua obra literária no Brasil e nos EUA.
Obras literárias publicadas: Poesia: Estarrecer (1984), Espelhar (1991), Esvazio (1991), Ondas e Azuis (1992), Poesia Reunida (1996), Todo Implícito (1998); Contos: Lição Invisível (1997), Precioso Impreciso (2001), Inescritos (2004). Publicou, também, obras acadêmicas.
Recomendo a excelente e esclarecedora entrevista dada pela escritora – esclarece aspectos da literatura contemporânea brasileira – ao site Germinal literatura (clique aqui), da qual transcrevo algumas palavras, que ajudam a compreender seu conto:“Fragmentação, cortes, sobreposição, exploração de temas não usuais, ironia, colagem, absurdo, manipulação sintática e semântica, como eu apresento nos meus textos, não é transgressão, não é novidade genuína, é uma tentativa de aproximação da maravilhosa desordem da realidade que não pode, por seu dinamismo, ser registrada tendo por base regras artificiais.” (Luci Collin – site Germinal literatura).Sobre o conto – seria essa a caracterização de gênero correta? –, devo esclarecer que foram, por mim, extraídos trechos, dos quais, evidentemente, não se pode dizer que não fazem falta, desde que ali foram colocados pela autora e têm uma função bastante relevante. São elementos estranhos ao andamento maior do conto – de propósito devo acrescentar – e de várias naturezas. Dois deles, por exemplo, pretensos comerciais, interrompem o eixo que encadeia as várias partes, e transformam o texto, provisoriamente, numa representação de televisão, transgredindo o gênero. Pela exiguidade do espaço deste blogue, optei por publicar apenas os trechos que estão sob um mesmo fio condutor. Mas, de início, devo prevenir meu visitante para não se entusiasmar com o termo “fio condutor”, que usei. Apenas se vislumbra uma ligação sutil entre esses segmentos, talvez conduzida pela expressão “A personagem principal”, enfaticamente reiterada neles.Antes de chegar ao texto, quero que se atente para o título “No céu, com diamantes”, em relação ao nome Luci, da autora, e se faça a ligação, que qualquer pessoa, adolescente dos anos 1960, faria com a canção dos Beatles “Lucy in the sky with diamonds” (1967). Na época, por causa da observação das iniciais do título, remeteu-se, imediatamente, a canção ao alucinógeno LSD, embora fosse dada, posteriormente, outra versão (clique aqui). Observe, ainda, o final da primeira parte, que parece fazer coro a isso. Entendendo-se dessa forma, parece que essa é uma narrativa “psicodélica”, termo tão em moda na época – aconselho o dicionário – e a pessoa que lê está sendo conduzida por esse entendimento. Sinal dos tempos literários, do Pós-modernismo, que leva o caminho irreverente iniciado pelo Modernismo às últimas consequências. Quero chamar a atenção, ainda, para o fato de que as notas numeradas abaixo, em fonte 10, são, ainda, do texto ficcional e estão descontínuas, pelo fato de eu ter retirado alguns trechos, como foi informado. Mas observe o que comento adiante a respeito delas. No céu, com diamantes.Luci CollinTUDO ESTÁ ENTRE PARÊNTESES: Sim, tem caráter autobiográfico. É um texto com mau caráter.2 A personagem principal é severamente míope (CLOSE). A personagem principal sempre escreve atraso com “Z”. A personagem principal pensa que é a protagonista e que, no correr da pena, um intrincado enredo se apresentará, mas nada de importante, nada mesmo, acontecerá neste parágrafo. Nem nos outros. Todas as terças e quintas a personagem principal rega uma samambaia, daquelas vagabundinhas que nunca vai pra frente, só porque alguém colocou uma samambaia ali no escritório e ninguém molha. Ou seria “ali no laboratório”? Ou seria “ali no consultório”? “Ali no gabinete”? “Ali na sacristia”? A personagem principal tem uma rinite crônica que lhe confere um quê de irritabilidade. Ninguém, nem ela mesma, sabe que é alergia a pólen e derivados. A personagem principal sofre de insônia e ninguém sabe.3 Mas tem aquelas olheiras esquisitíssimas (CLOSE) – acho que algumas pessoas já deduziram a coisa toda da insônia.
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TUDO NOS CONFORMES: Sim, cheira a autobiografia. A personagem principal usa lentes de contato e enxerga relativamente bem, obrigado. A personagem principal balança a perna quando está irrequieta (CLOSE). A personagem principal tem uma obturação antiga que incomoda mas, por falta de tempo/dinheiro/referência, não vai nunca ao dentista. Dorival fica se perguntando o tempo todo: “Terei mau hálito?” Joanice fica se perguntando o tempo todo: “Estará meu hálito adequado para a situação que se insinua?” Elisvaldo fica se perguntando o tempo todo: “Será que lembrei de escovar os dentes antes de sair de casa?”4 Demétria fica se perguntando o tempo todo:”Devo perguntar a alguém se meu hálito está realmente agradável?” A personagem principal não pergunta nada. Não pergunta nada. Não pergunta nada a ninguém. Porra, isso sim é personagem, cara! A personagem principal exagera o tempo todo – mas só por dentro. A personagem principal só entra pela porta da frente.............................................................................TUDO DE BOM, QUERIDA!: “Sim, está me cheirando a autobiografia.9 A personagem principal tem umas pontadas do lado direito, mais pra cima, isso, bem aí! Mas só às vezes (principalmente ao subir aquela maldita escada que dá para o laboratório). Mas não é caso de operar. A personagem principal, de acordo com os moradores da região, é “uma prevalecida” (quer dizer, é uma besta). A personagem principal rói vergonhosamente as unhas – mas só quando as lentes estão embaçadas ou a rinite piora. (“Dava-lhe nos nervos”, registrará um futuro biógrafo com português ruim.) A personagem principal tem plena consciência das diferenças básicas entre Kojak e Kodak; contudo, foi vista, uma vezinha só mas foi, comendo com a boca quase-aberta. Era plenilúnio. Cogita-se que tal personagem seja principal porque não há mais ninguém interessado no papel. A personagem principal só entra pela porta dos fundos. Só funda pela porta da prente. Fó sunda fela porta pa frente...................................................................................(SEGUE): Tomei a água da samambaia! Cometi o pecado da gula. Depois jejuei por três meses e, por conselho de médicos especializados, voltei a comer. Voltei a matar, roubar, faltar aos cultos e afins, às cerimônias de coroação, às sagrações da primavera...............................................................................Estou confessando: não guardei nem domingos nem feriados e não comi bacalhau na sexta-feira santa e ainda escutei hard rock mesmo sem gostar no dia que era pra fazer silêncio, só para afrontar a vizinha de cima. Não paguei o dízimo e gastei o dinheiro com um cd de boleros uma revistinha da mafalda um cachecol de listinhas coloridas um anel com o yin e yang que eu nunca vou usar uma maço de free curto um detergente com glicerina pra não estragar muito as mãos quando tiver coragem de lavar a louçarada da pia uma caixa de band-aid redondo pra pôr no calcanhar quando usar o sapato novo um tubinho de super bonder pra consertar o que estiver lascado um adesivo do meu time pra pôr na janela da frente e provocar o vizinho do lado um pente. Pensando bem, o band-aid (peguei mania nessa coisa de tracinho) deveria ter sido o tradicional. Pensando bem, a revistinha poderia ter sido de sacanagem, o cachecol liso, o anel poderia ter sido do meu time, o detergente um sabão em barra que durava mais e o cigarro um pirulito que não causa dano ao pulmão, acho. Mas o pente tá bom.Não fiz o separe em sí-la-bas, não engraxei os sapatos não passei fio dental corretamente não sei o que quer dizer “inconcusso” não fui ao baile e formatura não liguei pra ninguém no ano-novo. Confesso.E nunca amei-nos como a mim mesmo.Brilhos que nem sempre se vê.Tudo está entre parênteses:“diamante”, do gr. adámas, “indomável”, pelo lat. adamante.13Só fui para casa.Tinha céu.E pensei que era escritor.


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2. Em 25 de maio próximo passado nossa emérita Annamaria Polli-Sanson publicou um artigo(pequeno, quase uma notinha, alegando “desnecessariedade em tomar o tempo dos leitores”) n’A Tribuna de Curitiba atentando para o “caráter degenerativo da produção pretensamente literária” do autor deste conto. Contatos com Polli-Sanson (palestras, manhãs de autógrafo, entrevistas, chás) pelo e-mail annita@rapindinha.com.br
3.Cf. THEODORO, 2003:242, para comentário sobre o uso dos artigos o/a antecedendo a palavra “personagem” quando substantivo comum de dois ou mais gêneros.
4. Até quando está em casa, coitado.
9. “Um cheirinho ruim”, conforme SYDNEY et alii (2003:26 a 37).
13. HOLANDA, 2003:585
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Há muita coisa a ser observada. A primeira delas é o humor sarcástico que conduz a narrativa. O uso das notas introduzidas pelo escritor (veja a numeração acima), principalmente pela (pseudo) formalidade acadêmica em que se apresentam, são uma clara crítica desconstrutiva à tal linguagem, situação vivida pela própria Luci. E é preciso atentar para o fato de que a primeira já se apresenta com o número 2, ou seja, ou encena um puro descompromisso com a realidade ou pretende uma quebra do princípio, meio e fim ou insinua que haveria uma parte não acessível ao leitor.Optei por ir comentando, aos poucos, cada segmento para facilitar o acompanhamento.Parte 1 (TUDO ESTÁ ENTRE PARÊNTESES)1. Há a insinuação de que o texto, supostamente ficcional, como se avalia pela palavra “personagem”, tem íntimas ligações com a pessoa que escreve: é autobiográfico. Ao longo da análise, veremos que isso nada tem a ver com Luci Collin.2. "Personagem principal" e "protagonista" são, no dicionário, sinônimos. Logo, começa a se estabelecer o nonsense que domina o texto, apimentado por uma ironia que tudo domina.3. Em todas as quatro partes, há como que uma apresentação, uma caracterização da personagem. Isso é comum em textos narrativos. Porém, o leitor, do mesmo modo que a personagem, fica sempre com a impressão de que os textos são uma preparação para o início da narração que nunca começa. Aliás, ele já havia sido avisado de que nada de importante nesse sentido aconteceria.4. Observe-se que com a expressão “close”, a caracterização física desce a minúcias, mas não a minúcias literárias: a alusão a uma câmera que se aproxime leva o leitor à dinâmica do visual, ou seja, da arte dramática.5. Com o trecho “A personagem principal pensa...”, o narrador a delineia como um ser, até certo ponto autônomo e fora do texto, que reflete sobre a própria narrativa e, assim, traça-lhe uma existência pré-textual.Parte 2 (TUDO NOS CONFORMES)6. Nessa altura, o leitor já percebeu a linguagem coloquial, não formal, não comprometida com o que seria, em período estético anterior, a linguagem literária.7. Observou também a interseção entre “a realidade” – chamemos de realidade o espaço fora do espaço da “personagem principal”, onde estão Dorival, Joanice, Elisvaldo, Demétria e o narrador – e a ficção. Com essa estratégia, criam-se dois níveis narrativos: um explícito, o da “personagem principal” e outro implícito, onde se movimentam narrador e os outros. Parte 3 (TUDO DE BOM, QUERIDA!)8. O narrador introduz no texto um interlocutor com quem dialoga – “mais pra cima, isso, bem aí!” – e que pertence, também, à narrativa dita implícita. Ele não é o leitor.9. “Cogita-se que tal personagem seja principal porque não há mais ninguém interessado no papel.” A frase pretende, intencionalmente, aniquilar qualquer certeza do leitor sobre a diferença entre gênero literário e dramático. Na verdade, a ideia sensata seria: ... que tal atriz tenha o papel principal, porque...”. Uma personagem não reivindica para si a função principal, ela é ou não é. Mas a sensatez, no sentido tradicional do termo, é a última coisa que se pretende aqui. O confundir a leitura é a meta.Parte 4 (SEGUE)10. A última parte dá o tiro de misericórdia no leitor: o “escritor”, como se nomeia e caracteriza o narrador – pense-se aqui na personagem inscrita na ficção implícita, na falsa realidade textual – toma a água da samambaia de sua personagem, como a se embeber de ficcionalidade, ele mesmo. E aqui se revela por inteiro a expressão autobiográfica. Sua personagem desaparece e ele se torna personagem de si mesmo.11. Fica patente a invasão, no texto, de uma realidade, essa sim, não textual. A intromissão de produtos da vida cotidiana é uma marca do Pós-modernismo, que não se furta ao imediatismo de seu tempo.12. Mas devo registrar que a leitura do texto acima, me lembrou muito o discurso do narrador de A hora da estrela (1977), de Clarice Lispector, em todos os procedimentos literários, até na criação de vários níveis ficcionais. Mesmo com um aparente hiper-realismo pelo apropriar-se do externo e do concreto do corriqueiro diário, mais do que em todas as outras partes, a derradeira assume, pela renúncia à pontuação, pelo ímpeto discurso, um enunciado comum ao fluxo do pensamento, muito comum na literatura não só contemporânea e brasileira, mas mundial, e muito utilizada a partir do século XX. Esse discurso, portanto, resumido no “Estou confessando”, se autojustica em sua não sensatez.
Confundido pelo choque desses dois extremos – o excesso de aproveitamento do exterior concreto de um lado e a não linearidade do processo mental, de outro, que se expressa através de idas e vindas, de interrupções –, aquele que acompanha o texto submerge. O que satisfaz inteiramente ao propósito “inconcusso” pós-moderno da escritora de subverter as premissas racionais de seu leitor.

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