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sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

A lírica surpreendente de um sujeito - Literatura de ontem 11

Hilda Hilst nasceu no interior de São Paulo, em 1930, e faleceu em Campinas (SP), em 4 de fevereiro de 2004 e, por isso, neste fevereiro, faço a postagem em agradecimento a seu talento. Seu pai e poeta Apolônio A. Prado Hilst, quando a filha nasceu – mulher –, exclamou que era um azar. Hilda dizia que começou a escrever para crescer a seus olhos, o que foi em vão: aos 35 anos, já separado da mulher, ele é internado por esquizofrenia e não leu a filha.
A vida da poeta é cheia de fatos especiais, tanto no campo pessoal, como no profissional. Estudou tanto física, principalmente a quântica, quanto filosofia e matemática, embora seu interesse maior pareça ser, realmente, a metafísica. Muitos analistas seus veem a configuração especial de Deus, em seus escritos, de acordo com a crença do gnosticismo, corrente filosófico-religiosa dos primeiros cristãos.
Tendo entrado em contato com os estudos do alemão Friedrich Juergenson, em seu livro Telefone para o além (remeto ao site Comunidade espírita, onde se faz uma descrição interessante desse trabalho, clicando aqui), em que se pretendia o contato com pessoas já falecidas, Hilda, durante muito tempo, em seu sítio “Casa do Sol”, periferia de Campinas, onde viveu de 1966 a 2004, fez, também, gravações de inúmeras vozes.
Como poeta, escandalizou os críticos com sua “trilogia obscena”, escritos que são considerados eróticos por alguns – muitas teses foram escritas sobre elas na academia, posteriormente – e pornográficos por outros: O Caderno Rosa de Lori Lamby, Contos d´escárnio – textos grotescos e Cartas de um Sedutor. Neles aparecem temas tão caros à sociedade de hoje – pedofilia, por exemplo – e que expõem a diversidade humana.
A última surpresa que Hilda Hilst fez a seu público – essa definitiva – foi que, depois de ter recebido do compositor Zeca Baleiro, seu disco Por Onde Andará Stephen Fry?, enviou para ele, em disquete, toda a sua obra poética e o autorizou a musicá-la. O músico se encantou com a obra Júbilo Memória Noviciado da Paixão, em seu capítulo "Ode Descontínua e Remota para Flauta e Oboé - De Ariana para Dionísio", história do amor impossível de Adriana e Dionísio, tendo produzido com ele um CD, que tem o mesmo nome, por sua gravadora “Saravá discos”, e iniciado em 2003. Como a voz enunciadora do texto é feminina, ele resolveu convidar diversas cantoras famosas para interpretar as várias “canções”, como são denominadas as poesias. Enquanto esteve viva – morreu em fevereiro de 2004 –, a poeta participou do projeto. Infelizmente, não chegou a vê-lo a termo, só dado ao público em 2005.
Abaixo, transcrevo um poema do livro Alcoólicas (1990), para que se tenha um encontro com a sua obra, encontro do qual não se sai a mesma. O texto de Hilda deixa uma cicatriz, uma tatuagem inapagável, em cada leitor, pela força e ineditismo, além da beleza, de suas imagens: a vida é crua, é faminta, mas também é líquida, o que enseja a possibilidade de que essa crueza e fome engolfe o eu poético

I

Hilda Hilst

É crua a vida. Alça de tripa e metal.
Nela despenco: pedra mórula ferida.
É crua e dura a vida. Como um naco de víbora.
Como-a no livor da língua
Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me
No estreito-pouco
Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida
Tua unha plúmbea, meu casaco rosso.
E perambulamos de coturno pela rua
Rubras, góticas, altas de corpo e copos.
A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos.
E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima
Olho d’água, bebida. A vida é líquida.

(Alcoólicas - SP: Maison de vins, 1990.)

A seguir, posto alguns trechos das canções musicadas por Zeca Baleiro do livro acima mencionado, nas vozes de três intérpretes excepcionais, reproduzidas de seu disco pelo YOUTUBE. Observe-se que, com os arranjos e instrumentos escolhidos, enlaçam-se a atualidade e o medievalismo. Para ouvi-las, clique em cada vídeo abaixo e leia o poema.

Canção II

Poema de Hilda Hilst /Música de Zeca Baleiro

Porque tu sabes que é de poesia
Minha vida secreta. Tu sabes, Dionísio,
Que a teu lado te amando,
Antes de ser mulher sou inteira poeta.
E que o teu corpo existe porque o meu
Sempre existiu cantando. Meu corpo, Dionísio,
É que move o grande corpo teu.
Ainda que tu me vejas extrema e suplicante,
Quando amanhece e me dizes adeus.

Cantada por Verônica Sabino no vídeo abaixo (no Youtube aqui).





Canção III

Poema de Hilda Hilst /Música de Zeca Baleiro

A minha Casa é guardiã do meu corpo
E protetora de todas minhas ardências.
E transmuta em palavra
Paixão e veemência
E minha boca se faz fonte de prata

Ainda que eu grite à Casa que só existo
Para sorver a água da tua boca.
A minha Casa, Dionísio, te lamenta
E manda que eu te pergunte assim de frente:
À uma mulher que canta ensolarada
E que é sonora, múltipla, argonauta
Por que recusas amor e permanência?

Cantada por Maria Bethânia no vídeo abaixo (no Youtube aqui)




Canção V

Poema de Hilda Hilst /Música de Zeca Baleiro

Quando Beatriz e Caiana te perguntarem, Dionísio
Se me amas, podes dizer que não. Pouco me importa
ser nada à tua volta, sombra, coisa esgarçada
No entendimento de tua mãe e irmã. A mim me importa, Dionísio, o que dizes deitado, ao meu ouvido
E o que tu dizes nem pode ser cantado
Porque é palavra de luta e despudor.
E no meu verso se faria injúria
E no meu quarto se faz verbo de amor

Cantada por Ângela Ro Rô no vídeo abaixo (no Youtube aqui
)




Para se ter a relação das obras de Hilda Hilst remeto ao site da Wikipédia (aqui).


5 comentários:

Luiz Alberto Machado disse...

Maravilha chegar por aqui e encontra a grande Hilda Hilst e tudo maravilhosament postado. Já estou indicando nas minhas páginas, aguarde.
Beijabrações
Luiz Alberto Machado
Escritor, compositor musical e radialista
www.luizalbertomachado.com.br
http://twitter.com/lalbertomachado

ju rigoni disse...

Adorei esse post, Eliane!

Admiro na poeta seu humor, sua irreverência, sua sagacidade.

Seu jeito politicamente incorreto de viver e expressar-se eram uma lição de liberdade. Gosto especialmente da fase em que ligou o "foda-se!" Está certo que, com o passar do tempo, seus escritos foram ganhando cada vez mais complexidade. Complexos, sim. Erudição, sim. Mas não a erudição arrogante, excessivamente hermética, - generosidade que segue ampliando muito o seu leque de admiradores. Hilda sabia muito bem o que estava fazendo. Entre o eu da poeta e o eu de seus poemas, lá estava Hilda, a entrelinha que jamais se pretendeu reta. Depois de mergulhar em sua obra, impossível afirmar que ela morreu. Hilda intuía isto...

Bjs, Eliane, abraços no filhão. Inté!

danilo disse...

eliane,
obrigado pela visita ao meu blog- tenho outros, como vc. ´pode ver no meu perfil- publico mais diuturnamente no "www.atipoesia.blogspot.com". grato pelos elogios. Seu blog é de uma delicadeza impar- ainda mais quando se reporta à grande hilda hirst, de quem sou leiotr há muito temkpo.
grande abraço- c0ntinuemos a nos ler.
Danilo.

danilo disse...

eliana;
postei um comentário sobre a hilda hirst aqui no seu blog- sumiu?
de qq.maneira, obrigado pela visita ao musa pornografica- estou mais amiude em www.atipoesia.blogspot.com" vá lá, vamos nos lerver-
abraços Danilo

Anônimo disse...

Olá é a 2ª vez que vi o teu blogue e reflecti muito!Espectacular Trabalho!
Até à próxima