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quinta-feira, 26 de novembro de 2009

O epitáfio poético de Ana Cristina César

Apesar da escritora aqui postada, prematuramente, já fazer parte do passado, pela atualidade de seu texto e pela ciranda que compõe com duas outras, bem vivas e atuantes, dou seus poemas nesta seção. Ana Cristina Cruz César (1952-1983) ou Ana C., como se autodenominava, era carioca de uma culta família de classe média. Escreveu em jornais e revistas alternativas, fez crítica literária e escreveu boa poesia. Fez parte de um grupo chamado de poesia marginal ou de mimeógrafo, dos anos 70, geração fecunda da qual fizeram parte Chacal, Cacaso, Francisco Alvim e Paulo Leminski (já postado neste blogue). Foi ela mesma que produziu e financiou seus livros de poema Cenas de abril (1979), Correspondência completa (1979) e Luvas de pelica (1980).
De poesia, podemos citar seus livros A Teus Pés (publicado pela Editora Brasiliense ainda em vida - 1982); Inéditos e Dispersos (póstumo - 1985); Novas Seletas (póstumo, organizado por Armando Freitas Filho). Ficou conhecida num livro chamado 26 poetas hoje, organizado por Heloisa Buarque de Hollanda, em 1976. Seu suicídio em 1983, surpreendeu o público. A última estrofe do poema abaixo, de autoria de Ana Cristina, parecia antecipar o fato.


Tenho uma folha branca
e limpa à minha espera:
mudo convite



tenho uma cama branca
e limpa à minha espera:
mudo convite



tenho uma vida branca
e limpa à minha espera.

O poema de Cacaso (Antônio Carlos de Brito), contemporâneo e marginal como a poeta, cuja partida também foi prematura, traduz a estupefação geral.

Ana Cristina

Cacaso

Ana Cristina cadê seus seios?
Tomei-os e lancei-os
Ana Cristina cadê seu senso?
Meu senso ficou suspenso
Ana Cristina cadê seu estro?
Meu estro eu não empresto
Ana Cristina cadê sua alma?
Nos brancos da minha palma
Ana Cristina cadê você

Estou aqui, e você não vê?


Posto abaixo uma seleção de belos poemas da escritora.

Poema I

Ana Cristina César

Acreditei que se amasse de novo
esqueceria outros
pelo menos três ou quatro rostos que amei
Num delírio de arquivística
organizei a memória em alfabetos
como quem conta carneiros e amansa
no entanto flanco aberto não esqueço
e amo em ti os outros rostos


Poema II

Este Livro

Ana Cristina César

Meu filho. Não é automatismo. Juro. É jazz do
coração. É prosa que dá prêmio. Um tea for two
total., tilintar de verdade que você seduz,
charmeur volante, pela pista, a toda. Enfie a
carapuça.
E cante.
Puro açúcar branco e blue.


Poema III

Nada, Esta Espuma

Ana Cristina César

Por afrontamento do desejo
insisto na maldade de escrever
mas não sei se a deusa sobe à superfície
ou apenas me castiga com seus uivos.
Da amurada deste barco
quero tanto os seios da sereia.

Poema IV

Poesia

Ana Cristina César

jardins inabitados pensamentos
pretensas palavras em
pedaços
jardins ausenta-se
a lua figura de
uma falta contemplada
jardins extremos dessa ausência
de jardins anteriores que
recuam
ausência frequentada sem mistérios
céu que recua
sem pergunta

(Este poema foi usado como uma das epígrafes de minha Tese de doutorado, do capítulo 6, denominado “O palco do indeciso”.)


Poema V

Samba-canção

Ana Cristina Cesar

Tantos poemas que perdi.
Tantos que ouvi, de graça,
pelo telefone – taí,,
eu fiz tudo pra você gostar,
fui mulher vulgar,
meia-bruxa, meia-fera,
risinho modernista
arranhando na garganta,
malandra, bicha,
bem viada, vândala,
talvez maquiavélica,
e um dia emburrei-me,
vali-me de mesuras
(era comércio, avara,
embora um pouco burra,
porque inteligente me punha
logo rubra, ou ao contrário, cara
pálida que desconhece
o próprio cor-de-rosa,
e tantas fiz, talvez
querendo a glória, a outra
cena à luz de spots,
talvez apenas teu carinho,
mas tantas, tantas fiz...

Trago, além de Ana C. e de Cacaso, duas poetas que foram homenageadas neste blogue (Rosângela A. de Castro - outubro – “Literatura, já 5” e Cintia Barreto - setembro – “Literatura, já 4”) e que se reportaram a ela em suas produções. É bom a gente comparar o poema anterior ao que vem abaixo.

Com Ana Cristina

Rosângela A. de Castro


I

um dia emburrei-me
porque inteligente
me punha sem sentido
tinha mentido
qual o sentido?
ser bicha, malandra,
avara, vândala?
e se der certo?
se eu tiver o seu carinho?
inteligente sou
triste
só e dona da existência
em que Deus e o Demônio
se encontram no bar
fazem comércio
das almas em pânico
as sossegadas já
foram arrematadas
num leilão disputado

II

mas tantas fiz...
fiz poema fiz comida
fiz a vida simplesinha
fiz difícil bem pensada
fiz a música cantada
tocada é pedir demais
fiz seu céu estrelado
fiz a chuva de trovão
fiz no quarto o que queria
tudo tudo não

III

esse homem exige tanto
se vende caro e quem sabe
(não li direito na placa)
a paga está bem aqui
no quente da minha mão
(poeminha safado)


À Ana C.

Cintia Barreto

Desculpe o egoísmo, amiga,
mas eu a quero aqui.

Eu a quero minha.
Não deixe a mudança de curso
verter os ébrios caminhos
da marginal.

Olhe mais uma vez
pela janela, sem medo.
Escale as ruínas e
tampe os ouvidos aos falantes.

Desfaça velhas intrigas e
libere o Eros acorrentado.

Agora, venha, dê-me a mão.
Olhe, novamente, pela janela
e vamos juntas retirá-la deste chão.

Um comentário:

Tuca Zamagna disse...

Há tempos estou para entrar aqui, Eliane, e comentar esta sua postagem. Você até apareceu no meu blog, com muita simpatia e condescendência, e nem assim eu apareci.

Agora pago essa dívida comigo mesmo.

É que adorei esse pequeno ensaio que reúne três poetas sendo uma que conheci e admiro muito (Ana C.) e outra que conheço e já admirava apenas como pessoa (Rosângela A. de Castro), até encontrá-la aqui, revelando um lado que eu desconhecia, o de poeta.

Ao ligar Rosângela e Cíntia Barreto à grande Ana. C., você não só homenageia, com justiça, as duas poetas menos conhecidas. Mas, antes de tudo, dá aos seus leitores a oportunidade de reencontrar, ou talvez até conhecer, um dos nomes mais importantes da literatura brasileira.

Obrigado. E parabéns pelo blog.

Bjs