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segunda-feira, 21 de setembro de 2009

A doida dona da poesia - Adélia Prado

Eliane F.C.Lima

As palavras postadas neste segmento são estudos sobre as palavras trabalhadas pelos artistas para compor seus textos literários, estudos esses a que me dediquei na universidade, em congressos e publicações específicas.

O texto literário: Dona Doida

Adélia Prado

Uma vez, quando eu era menina, choveu grosso
com trovoadas e clarões, exatamente como chove agora.
Quando se pôde abrir as janelas,
as poças tremiam com os últimos pingos.
Minha mãe, como quem sabe que vai escrever um poema,
decidiu inspirada: chuchu novinho, angu, molho de ovos.
Fui buscar os chuchus e estou voltando agora,
trinta anos depois. Não encontrei minha mãe.
A mulher que me abriu a porta, riu de dona tão velha,
com sombrinha infantil e coxas à mostra.
Meus filhos me repudiaram envergonhados,
meu marido ficou triste até a morte,
eu fiquei doida no encalço.
Só melhoro quando chove.

Análise do texto: O que é poesia.

Eliane F.C.Lima

No texto de Adélia Prado, o "chover" funciona como um signo sensível, segundo a conceituação de Deleuze, em Proust e os signos, e torna-se a chave para essa memória involuntária, a qual desencadeia todo o processo poético.
Outro elemento significativo e que tem um papel de elo temporal é o "Fui buscar os chuchus...", onde há uma superposição de dois significados que podem ser desdobrados, um como o tempo da infância e outro como a fase adulta, da volta ao passado através da recordação. "Buscar os chuchus" passa a ser uma ação memorialística de volta a um estado de felicidade. Interpenetram-se o possível significado das duas fases, causando o estranhamento poético. Isso faz o texto ser literário e maravilhar o leitor. A realização de um poema está longe de se dar, exclusivamente, através de uma forma visual.
É um eu memorialístico, conforme se dizia acima, envolvido pelo afetivo, um eu dissociado, como se verá adiante - aí está a justificativa brilhante do "Dona Doida" -, que revisita as ações maternas do outrora. O cotidiano, lapidado de sua superficialidade monótona, puro mel da infância, transforma-se em fazer e saber literário, em objeto estético: a mãe, alçada de seu patamar familiar, revigora-se em agente lírico.
No entanto é preciso observar que há um fracionamento temporal bem mais minucioso do que presente e passado e que é preciso observar.
Há um primeiro tempo da infância de "Uma vez, quando eu era menina..." até "Fui buscar os chuchus...". A expressão que fecha o segmento está presa, superficialmente, ao significado denotativo do passado.
Há um segundo tempo não dito, pressuposto por algumas alusões: ela cresceu, casou e teve filhos. A anulação discursiva desse tempo feito vácuo caracteriza-o como negativo dentro do significado geral do texto. Na verdade, pela constatação de uma necessidade de volta a um tempo mais gratificante do que o segundo, é possível se perceber nesse a-tempo uma dimensão antitética à infância.
O terceiro tempo é quando se realiza o processo de lembrar - "Fui buscar os chuchus e estou voltando agora,/trinta anos depois." Então à ação de ir buscar chuchus se junta um outro significado: o ir buscar um passado. Observe-se, ainda, que o "agora" (verso 7) também não se refere ao momento da enunciação do poema - o verdadeiro presente -, pois se dá em um tempo em que todos os verbos estão no passado: a mulher riu, os filhos repudiaram e o marido ficou triste. Esse sentimento familiar de rejeição pela renúncia do eu lírico ao contrato social de mãe e esposa permite ao leitor inferir que o enunciador poético vive um desajustamento à vida. É fundamental observar que nos versos 9 e 10 há um confronto entre o eu verdadeiramente subjetivo, o da infância, preservado na loucura e traduzido no "me" e o outro da idade adulta e que é visto pelo primeiro como objeto: a mulher que abre a porta e ri de dona tão velha é um eu que não se reconhece, o que se alicerça no "eu fiquei doida". Caracteriza-se, como dito, a dissociação do eu.
O quarto tempo, finalmente, é o presente, o tempo da enunciação. Deve-se repetir que os verbos no pretérito, do verso 8 ao 13, inviabilizam, obviamente, uma simultaneidade ao tempo do "chove agora".
Há, portanto, três passados: um remoto, o da infância reconstruída; outro que não se realiza, explicitamente, no texto e um mais imediato, em que acontece a loucura. Faz-se, por causa disso, duas voltas ao passado; um movimento do terceiro tempo para o primeiro e um do quarto para os outros.
A partir do presente da enunciação, do momento mágico da construção poética, a memória consegue reunir o triângulo tantas vezes cantado pela literatura, entre loucos, crianças e poetas. É a capacidade de fugir do presente pela memória a estratégia principal do texto, a terapia contra a insanidade. Ao se examinar o último verso e se reconhecer que o "chover" reconduziu ao passado, impossibilitou a relação familiar e instaurou a loucura, constata-se que a esse mesmo processo mnemônico desencadeado pelo signo sensível pode-se atribuir a melhora. É o verdadeiro paradoxo lírico que configura, indiscutivelmente, o texto como poesia.



Um comentário:

Marta Eugênia disse...

Sou fã de Adélia Prado. E tinha que ser, afinal, seus poemas modificaram a minha vida de um modo tão importante que vivo à espreita de quem tenta conversar sobre seus poemas. Dona Doida é um dos meus favoritos. Esse blog me encheu de esperança literária e nem sei bem de que maneira revela-se essa esperança. Mas não importa. É esperança, é verde e remete a chuchus.
Gostei do seu comentário e vou acompanhar esse blog mais vezes.
Marta Eugênia - Arapiraca-Alagoas.